22.6.09

the poet's wife* (I)

**
Ela caminhava ao longo da rua, com passo certo e perdido. Estava certa de que queria caminhar, mas não sabia para onde. Já estava perdida há horas naquela cidade. Decidira sair do comboio numa cidade que não conhecia, a cerca de 100km do sítio onde deveria ter saído segundo o plano inicial. Mas o plano inicial nunca passava disso, facilmente substituído por outro mais atractivo, ou, pelo menos, novo.

A sua pele já contava 35 anos, mas continuava jovem. Quando calçava os ténis, punha uma t-shirt e a mochila às costas ainda a confundiam com uma miúda. Só os olhos a denunciavam. Não eram olhos de miúda. Na verdade, nunca foram. Há olhares que nos contam histórias infinitas num só relance. O dela contava. Havia duas histórias que nos eram segredadas na primeira troca, infalivelmente. Uma sobre a morte e outra sobre a vida. A língua em que recebíamos a mensagem às vezes era estranha, sibilante, leve, mas as emoções chegavam-nos com a intensidade prevista dos choques eléctricos. Porém, os seus olhos não eram só expressão, eram também cor. Uma cor inexistente e pura. Como um invólucro precioso de algo mais precioso ainda.

Parou à frente de uma retrosaria antiga e prendeu-se nos rendilhados de um tecido. Fascinavam-na os artifícios manuais, talhados com o hábito dos dedos rápidos das mulheres. Imaginava-as em grupos, em tardes solarengas de quintais de cal e cimento, como as da sua terra, a conversar a vida dos outros que se entrelaçava nos seus dedos junto com as linhas. Quis comprar aquele tecido e usá-lo à volta da cintura como um acessório que não era. Entrou na loja. Lembrou-se, no entanto, que não tinha dinheiro, que aquele desvio tinha-lhe custado a carteira quando passou por um grupo batedor de pequenos marginais. Subiu-lhe de repente o sangue às faces com aquela lembrança. Estava perdida e sem dinheiro. Tinha apenas alguém à sua espera no destino que não tinha tomado. Estava sozinha. Lembrou-se também de que já lhe tinha acontecido isso mais vezes e que tudo se resolvera, por obra do divino, não por ela, que era demasiado atrapalhada para desvelar soluções. Confiou a vida a mais esse acaso. Olhou em volta, envergonhada, saiu da loja e continuou a caminhar sem saber para onde.

*título roubado a F.A.R., da arca dos pretéritos
** foto de Ana Franco, retirada daqui

16.6.09

Família

- patti smith & hers by Annie Leibovitz -

| | |

Este é o nosso terceiro Junho juntos em terras blogosféricas, imagine-se.
À nascença não lhe dava(m) mais de 3 meses de vida.
A par do Midsommar no Ikea e das sardinhas gordurosas de Alfama, este é um dos grandes acontecimentos culturais do mês.

15.6.09

até amanhã

As palavras que se dizem entre álcool e fumo ganham asas e fogem. Ficamos com a ideia de que foram, na sua breve existência, geniais, só porque ajuda a alimentar o mito. Sim, o mito. A nossa vida só faz sentido a prestar contas a sucessivos pequenos mitos que vamos alimentando com ar e imaginação. Se não fossem eles, muitas vezes nem sequer nomeados, muitas vezes apenas latentes nalgum canto da nossa memória, tudo seria branco ou preto, nem a coexistência das duas cores seria permitida. As conversas são linhas que se atam e desatam, que experimentam novas combinações, que se enrolam às pernas, que articulam os dedos e os gestos, que puxam o sorriso, que pescam lágrimas, que atam nós na garganta e no estômago. Tudo mitos> mentiras> histórias> lendas> conversas. Deixa tudo de existir (ou apenas voam para longe) quando pousamos o copo e vamos para a cama. Até amanhã (mesmo que longe demais).


(se este fernando cunha não estava tão melhor a fazer isto...)

2.6.09

Claudia

Quando a entendo, os meus dias são negros.