14.11.09

pergunta-faca

Isto de andar às voltas com o que se passa cá dentro não é saudável de todo, disse o velho sentado no banco à adolescente que lhe propunha um jornal gratuito. Não quer o jornal? perguntou, confusa. Há muitos anos que tento compreender por que razão abandonei os meus objectivos tão cedo, se é que alguma vez me movi com eles no fim da rédea. Talvez até nunca sequer os tenha domesticado. A rapariga hesitou em ir embora ou aceitar o cargo de estranha ouvinte para que tinha sido subitamente eleita. Querer o mundo inteiro por dentro, não é como querer ser médico ou advogado. Não há anos de estudo que se possam estoicamente desfiar até chegar ao título. Não se sabe qual é o caminho, vadia-se na vida e no mundo à espera que a estrada debaixo dos pés se faça andante e nos mostre o que desejamos ver. É duro, é doloroso e deixa um amargo de boca que entra pela língua e emana pelo corpo todo. A rapariga já pousara os jornais e sentava-se lentamente a seu lado. Descobrir cedo que se é um homem sem rumo é triste, principalmente porque a insensatez adolescente ludibria-nos e faz-nos acreditar que não ter rumo é ter todos à disposição. Não é. Quis tudo porque não tinha nada. E continuo sem nada? podias perguntar-me, se pensasses. Tenho isto para te dizer: é alguma coisa. Tenho a voz. Tenho o que trago nas mãos que não é mais que a força que trago nos braços. Essas palavras que trazes aí impressas também dizem isto tudo que eu estou aqui a dizer, não há nada de novo. Pelo menos cá fora, não há nada de novo, mas depois há o cádentro, dentro de cada um, a vida secreta de cada um é um universo paralelo. Essas palavras têm vidas secretas dentro que se translêm quando fechamos o jornal e deixamos dois minutos para pensar naquilo. A rapariga olhava-o sem compreender. Não podes compreender o que te digo, reconheces o som das palavras mas desconheces a lógica que as une. Que não é sintáctica, é vivencial. Contra isso nada se pode. A rapariga baixou os olhos, corada e ainda mais confusa formulou a pergunta possível: nunca foi feliz? O velho olhou-a magoado, levantou-se e foi-se embora. Deixou-a sozinha com a pergunta que tinha tanto de ingénua como de faca afiada. Caminhou com as mãos nos bolsos, cabisbaixo e a desejar nunca mais encontrar ninguém na vida.

3 comentários:

alexc disse...

Quantos argumentos banais, tão banais que os enterramos com uma força insondável, e trágicos - tragicamente vazios tantas vezes - habitam esse "cádentro".E quantas vezes a ânsia do mundo todo não é mais que isso.
Talvez a rapariga não saiba, não possa compreender o que o velho lhe diz, mas estará sempre à disposição, com o jornal gratuito estendido, mesmo se o velho não o quiser, mesmo se não quiser nunca mais encontrar ninguém.
Não percebo nada do que escrevi, mas tu percebes, não é?

elle astelle disse...

revisto,como deves imaginar.

O residente disse...

"Tenho a voz".