A contas com este espírito renovador de ano novo chego à questão que muitas vezes me pica os miolos insistentemente: como é que se esquece? Não me refiro ao varrer para debaixo do tapete que eu logo quando tiver mais paciência (ou mais maturidade) lido com isto. Também não é, obviamente, apagar a existência do sucedido, isso seria um caso agudo de amnésia. É antes nunca mais lembrar se ninguém perguntar. E, de tanto não lembrar, quando surge a pergunta, já está num substrato inofensivo. Arrumar dentro da gaveta e fechá-la sem pontas de fora. Como é que se faz isso? Terei propensão para "arrastar cadáveres"? O Miguel Esteves Cardoso escreveu uma crónica sobre como esquecer (amores), mas não me revi na especificidade do assunto, porque eu quero esquecer tudo, quero esquecer o mundo de anteontem com celebrações dionisíacas e não enlutada por fora e com os lábios pintados por dentro.
A psicanálise às vezes devia ser despejada pelo cano abaixo, já que tudo se poderia resolver dentro de um vocabulário muito mais simples: sou rancorosa. por isso não esqueço. a minha bílis segrega quantidades lancinantes de rancor. tenho dificuldade em perdoar e até (para não dizer principalmente) a mim própria.
Nem todos somos Narcisos apaixonados pelo nosso reflexo, às vezes ele reflecte mais do que a pele que nos cobre e somos confontados com a mais pura fealdade sem qualquer pudor. E que fazer com ela? Disfarçá-la? Escondê-la? Não. Primeiro que tudo há que trazê-la à vida, trazê-la connosco à rua e depois, estoicamente, matá-la.
Eis as provas dispersas do meu primeiro crime.