11.9.07

O tempo do Chico (I)

Gosto do Chico Buarque. Gosto de tudo nele. Da multiplicidade criativa, da voz mal colocada, dos olhos azuis, do ar de malandro, do ar tímido que ainda consegue ostentar, apesar dos 40 anos de palco, da simplicidade que brota de tudo o que faz, apesar de ser um génio reconhecido na cultura brasileira.

Surpreendentemente, até da misoginia que emana de muitas das suas letras eu gosto. Já me julguei e confrontei em prolongados solilóquios sobre esta aparente contradição entre o meu gosto e a minha personalidade que, não sendo feminista, é com certeza anti-misógina. No entanto, chego sempre a uma conclusão: nas palavras/voz do Chico, parece-me bem. Contraditório? Claro que sim. De todos os ângulos, mas tenho de admitir que é esta a verdade. Ouvir o Chico cantar aquelas músicas, normalmente na primeira pessoa de uma voz feminina a maldizer um qualquer malandro que é o amor da vida dela, deixa-me rendida. E ele sabe disso. Não do meu caso particular, como é óbvio (e uma pena, posso já agora acrescentar), mas do estado em que deixa todas as mulheres que ouvem aquilo. E é por isso que ele enjeita aquele sorriso meio tímido, meio malandro, meio qualquer coisa, todo chico quando canta: E ao lhe ver assim cansado/ maltrapilho e maltratado/ainda quis me aborrecer?/qual o quê!/ Logo vou esquentar seu prato/ dou um beijo em seu retrato/ e abro meus braços p'ra você. E pronto, com isto há suspiros juvenis de mulheres feitas por esse mundo fora, porque há um homem com uns olhos azuis incomparáveis, que escreve letras como se fosse uma mulher sobre maridos cafagestes que não sabem sossegar a passarinha e depois vêm para casa, ó querida, eu explico! e a querida desfaz-se porque ele não explica nada mas faz amor com ela até de manhã.

Mas, caros cavalheiros, desenganem-se! Não pensem que esta é uma fórmula simples de executar e de sucesso garantido. Muito pelo contrário. Eu, apesar de confessa vítima deste embuste de sotaque carioca, consigo ainda discernir que o segredo está no executante e não no acto em si. Ou seja, é o Chico que tem o tal je ne sais quoi (bolas, não me saía um lugar comum tão balofo há tempo), já que a estratégia é a mais velha do mundo. Onde é que andaste até esta hora? (mão na anca, colher de pau na outra, rolos na cabeça, avental... as esposas já não são assim nos anos 2000, pois não??) Humm... sabem que mais!? Reformulo tudo!

As mulheres já não são assim, os homens já não são como os das músicas do Chico. Na verdade, será mais correcto pensar que nos nossos dias as mulheres estão-se nas tintas para onde os maridos andaram porque tiveram a trabalhar o dia todo e só querem chegar a casa, tomar duche e relaxar. Os maridos também não estão para inventar desculpas e na maior parte das vezes estão demasiado cansados para chegar a casa e tomar a mulher de paixão assolapada e fazer amor até de manhã, até porque amanhã é dia de trabalho. Pois. É isso. Chico? Estás fora do teu tempo. As pessoas já não são apaixonadas umas pelas outras. Agora há coisas mais importantes. Há o trabalho. Há a internet. Há o telemóvel. A PS2, 3, PSP e isso tudo. Há, porque não?, os cães para passear, há os filhos para ir buscar ao infantário e o quality time com eles (1h, 1h30) até adormecerem e depois há a televisão. Felizmente há também as artes, a literatura, a música, há os álbuns do Chico para viajarmos ao passado. Aquele tempo louco em que as pessoas se amavam, odiavam, desejavam, traíam, voltavam e beijavam-se no fim. Deve ser por isso que gosto tanto deste malandro de olho azul e sorriso bonito.

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Prá mostrar que 'inda sou tua
Até provar que 'inda sou tua

1 comentário:

querercoisasimpossiveis disse...

"I'm a spy in the house of love
I know the dream, that you're dreamin' of
I know the word that you long to hear
I know your deepest secret fear "

Jim Morrison in "The Spy"

(Este também era um malandro e era adorado por isso)

O maior malandro brasileiro não é o Chico (mas vem logo em segundo lugar), mas sim o Vinicius:

"(Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão)"

In "Samba da benção"


Hoje em dia, há muitas distracções, e a vida já não é romântica como era. Sendo assim tendemos a refugiar-nos em universos criados por músicas, filmes ou livros, que nos fazem viajar para outros momentos da história. Eu, por exemplo, passo muitas vezes por Ipanema. Basta ouvir Vinicius e Jobim, fechar os olhos, e imaginar.