30.9.07

o meu caminho

O caminho para casa pode ser sempre o mesmo. Aliás, é sempre o mesmo. As mesmas ruas, os mesmos prédios, os mesmos cafés, até os mesmos rostos. Tudo já se afundou numa rotina tão profunda que arrancar daí seria uma tarefa de carne e sangue. Não quero arrancar nada. Quero e preciso da rotina. É no caminho para casa que a minha vida se endireita, que os fios se realinham no lugar próprio, que a poeira pousa. À medida que a estrada desaparece debaixo do meu carro, as horas passadas do meu dia diluem-se no asfalto e dão lugar a novos tempos. Horas por gastar. Por viver.

Se por acaso um dia optasse por um caminho diferente a novidade distrair-me-ía desta tão querida introspecção e realinhamento interior e o meu amanhã nasceria em caos.

Mas os imprevistos acontecem e hoje o meu caminho para casa estava cortado. Tinha de optar por outro. Decisão difícil. Não. Decisão impossível. Não quero optar por outro. Quero ir por aqui. Este é o meu caminho. Mas, minha senhora, a estrada está cortada, não pode. Tenho de poder. Tenho de ir por aqui, não percebe? Não vai ser possível. Como não? Posso ao menos ir a pé? Sim, penso que sim, mas...

Só espero que o carro esteja no mesmo sítio amanhã e que as minhas pernas não me doam insuportavelmente.

20.9.07

| note to self |

Enquanto os acontecimentos esperados constituem os nossos alicerces confiáveis, os inesperados são aqueles que mudam intrinsecamente a vida de qualquer um.

Incrível como passamos quase uma vida inteira a tentar construir algo, tijolo com tijolo, cimento e lágrima e de repente há um bombardeio inesperado que deita tudo por terra. Na estupefacção do momento tentamos recolher os destroços, apanhar as pedras, juntá-las, reconstrui-las no nada que agora nos rodeia. Não é possível. Tudo caiu por terra. A vulnerabilidade novamente.

O extraordinário é que em vez de lamentar a construção perdida, floresce um sorriso e dizemos abençoada bomba: não tinha reparado que a minha muralha tapava o mais lindo pôr do sol do mundo.

14.9.07

O tempo do Chico (II)



(aqui uma mulher de carne suor e lágrimas, de outro tempo, do tempo do Chico)

11.9.07

O tempo do Chico (I)

Gosto do Chico Buarque. Gosto de tudo nele. Da multiplicidade criativa, da voz mal colocada, dos olhos azuis, do ar de malandro, do ar tímido que ainda consegue ostentar, apesar dos 40 anos de palco, da simplicidade que brota de tudo o que faz, apesar de ser um génio reconhecido na cultura brasileira.

Surpreendentemente, até da misoginia que emana de muitas das suas letras eu gosto. Já me julguei e confrontei em prolongados solilóquios sobre esta aparente contradição entre o meu gosto e a minha personalidade que, não sendo feminista, é com certeza anti-misógina. No entanto, chego sempre a uma conclusão: nas palavras/voz do Chico, parece-me bem. Contraditório? Claro que sim. De todos os ângulos, mas tenho de admitir que é esta a verdade. Ouvir o Chico cantar aquelas músicas, normalmente na primeira pessoa de uma voz feminina a maldizer um qualquer malandro que é o amor da vida dela, deixa-me rendida. E ele sabe disso. Não do meu caso particular, como é óbvio (e uma pena, posso já agora acrescentar), mas do estado em que deixa todas as mulheres que ouvem aquilo. E é por isso que ele enjeita aquele sorriso meio tímido, meio malandro, meio qualquer coisa, todo chico quando canta: E ao lhe ver assim cansado/ maltrapilho e maltratado/ainda quis me aborrecer?/qual o quê!/ Logo vou esquentar seu prato/ dou um beijo em seu retrato/ e abro meus braços p'ra você. E pronto, com isto há suspiros juvenis de mulheres feitas por esse mundo fora, porque há um homem com uns olhos azuis incomparáveis, que escreve letras como se fosse uma mulher sobre maridos cafagestes que não sabem sossegar a passarinha e depois vêm para casa, ó querida, eu explico! e a querida desfaz-se porque ele não explica nada mas faz amor com ela até de manhã.

Mas, caros cavalheiros, desenganem-se! Não pensem que esta é uma fórmula simples de executar e de sucesso garantido. Muito pelo contrário. Eu, apesar de confessa vítima deste embuste de sotaque carioca, consigo ainda discernir que o segredo está no executante e não no acto em si. Ou seja, é o Chico que tem o tal je ne sais quoi (bolas, não me saía um lugar comum tão balofo há tempo), já que a estratégia é a mais velha do mundo. Onde é que andaste até esta hora? (mão na anca, colher de pau na outra, rolos na cabeça, avental... as esposas já não são assim nos anos 2000, pois não??) Humm... sabem que mais!? Reformulo tudo!

As mulheres já não são assim, os homens já não são como os das músicas do Chico. Na verdade, será mais correcto pensar que nos nossos dias as mulheres estão-se nas tintas para onde os maridos andaram porque tiveram a trabalhar o dia todo e só querem chegar a casa, tomar duche e relaxar. Os maridos também não estão para inventar desculpas e na maior parte das vezes estão demasiado cansados para chegar a casa e tomar a mulher de paixão assolapada e fazer amor até de manhã, até porque amanhã é dia de trabalho. Pois. É isso. Chico? Estás fora do teu tempo. As pessoas já não são apaixonadas umas pelas outras. Agora há coisas mais importantes. Há o trabalho. Há a internet. Há o telemóvel. A PS2, 3, PSP e isso tudo. Há, porque não?, os cães para passear, há os filhos para ir buscar ao infantário e o quality time com eles (1h, 1h30) até adormecerem e depois há a televisão. Felizmente há também as artes, a literatura, a música, há os álbuns do Chico para viajarmos ao passado. Aquele tempo louco em que as pessoas se amavam, odiavam, desejavam, traíam, voltavam e beijavam-se no fim. Deve ser por isso que gosto tanto deste malandro de olho azul e sorriso bonito.

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Prá mostrar que 'inda sou tua
Até provar que 'inda sou tua

8.9.07

Lentes

As cores das coisas são sempre iguais. Ponho os óculos escuros, baixo-os e o mundo muda de tom, mas a cor é sempre a mesma. Não há grande surpresa. O azul torna-se azul escuro. O rosa torna-se rosa escuro.
Antigamente tinha uns óculos verdes. E antes disso tive uns azuis. Andava mais bem disposta nessa altura. O mundo era diferente. As cores misturavam-se. Um verdadeiro desafio à ordem natural das coisas.
Agora que decidi comprar uns óculos escuros, sem uma cor bem definida, ando desiludida com a previsibilidade cromática do mundo à minha volta.
Penso: como é que se pode aplicar este raciocínio às minhas relações interpessoais? Há sempre uma forma. Sempre me tentaram fazer engolir que a nossa forma de ver o mundo espelha de algum modo as nossas relações. É um tanto óbvio, não? Não é bem a descoberta de uma teora da relatividade... A forma como vemos o mundo está directamente ligada com a forma como nos relacionamos com as outras pessoas. Sim. Faz sentido. Até porque as outras pessoas fazem parte do mundo, não?
Ok, entrei na espiral. Estou tramada. Sempre que tento puxar de um raciocínio mais nonsense escorrega-me o calcanhar para esta espiral verborreica e era capaz de ficar aqui a noite toda a dizer nada.
Voltando ao início do texto, e para dar a ilusão de que esta divagação tem um mínimo de congruência, decido que a minha próxima aquisição vai ser uns óculos com uma lente de cada cor. Vou radicalizar a coisa. Se me der na gana, talvez arranje uns daqueles de cartão que se usavam nos anos oitenta para ver filmes a 3D (como o Monstro da Lagoa, o único de que tenho memória). E aí sim quero ver como isso se reflecte nas minhas relações interpessoais. My guess? Acho que vou de repente ficar sozinha. Ou então, se me distraio na estação do metro ainda me mandam uma moedinha para os pés_ coitadinha, pensam num nanosegundo, para depois me esquecerem para sempre. É isso mesmo. Sempre me fascinou a possibilidade de ser vista como louca sem o ser realmente (?!). Talvez seja mesmo isso: não só a minha visão do mundo é alterada pelos meus óculos de sol, como também a forma como o mundo me vê. Que conclusão brilhante.
Tenho de deitar estes fora, a minha vida vai mudar.