6.1.08

Desalinho

Há pessoas que sabem o que querem. Olham para o futuro e vêem um desenho nítido, a cores, com definição digital e som surround. Olham para o presente e têm o asfalto debaixo dos pés, uma estrada sóbria, com as linhas bem definidas, com contraste. Está identificada com um número e por isso perfeitamente individualizada em relação a todas as outras existentes. Ao longo do caminho existem placas acabadas de pintar com hierarquia de importância e instruções precisas: vai por aqui, não vás por ali, abandona isso, agarra aquilo, diz que sim, diz que não e por cima destas sempre uma a indicar em letras garrafais a direcção da Felicidade.
Essas pessoas estão perfeitamente incluídas (ou absorvidas pela) na sociedade: vestem-se como é suposto vestirem-se, dizem o que é suposto dizerem e pensam o que é suposto pensarem. Têm por princípio pensar em e nunca pensar sobre. Pensam em trabalho, na família, nos amigos, na namorada, em sexo, em férias, mas não se conhece nenhum caso de sucesso em que a fronteira tenha sido ultrapassada. O pensar sobre é um crime social porque está perigosamente ligado à mão no queixo, ao raciocínio, ao perceber a ligação entre os acontecimentos, questioná-los. Não se questiona nada quando se está no caminho para a Felicidade: casa e carro a prestações, marido, filhos e um PPR que é só vantagens.

Eu sou uma pessoa que não sabe o que quer. Portanto nada do que disse atrás se aplica à minha realidade. Olho para o futuro e vejo nevoeiro denso, opaco mesmo. Olho para o presente e há poeira num trilho de areia em que há pedra, silva, vala, montanha, vento e tempestade. Tenho a roupa colada a suor e pó ao corpo e os ténis sujos e rasgados.
Nunca vi uma placa. Às vezes tentei, como os antigos, decifrar augúrios divinos no vôo das aves ou nas tripas de um animal atropelado, mas nada de revelador.
As minhas incursões na sociedade têem sido feitas pela porta das traseiras, às escondidas e sem ter bem a certeza se era ali que queria estar. Mas como me vesti do avesso, não consegui permanecer muito tempo sem ser descoberta e expulsa.
Muitas das decisões que tomei na vida foram às cegas e sem saber o que me esperava do outro lado da porta. Às vezes era apenas uma porta pintada na parede, mas eu mesmo assim corria para ela. Tinha esperança até ao último minuto que ela se fizesse porta e se abrisse para mim. Só porque sim. Só pela esperança … Essa, surpreendentemente, nunca desentranhou.

eu não quero estar parado. fico velho. vou marchar até ao fim. isolado. nesta marcha solitária. dou o corpo ao avançar. neste campo aberto ao céu.
ninguém sabe para onde eu vou. ninguém manda em quem eu sou. sem cor nem deus nem fado. eu estou desalinhado.

2 comentários:

sonhadora disse...

Palmas!!! De uma orgulhosa desalinhada, que na vida trilha um caminho desregular e tb olha para um futuro de nevoeiro denso e opaco! Gostei muito do que li!
Beijocas

Anónimo disse...

Gostei muito desse post e seu blog é muito interessante, vou passar por aqui sempre =) Depois dá uma passada lá no meu site, que é sobre o CresceNet, espero que goste. O endereço dele é http://www.provedorcrescenet.com . Um abraço.